A única certeza que podemos ter e constatar é que o mundo vai mudar cada vez mais rápido e a necessidade dos gestores de se adaptarem às novas variáveis também terá que ser cada vez mais rápida. As crises e conflitos do Século XXI irão ter cada vez mais atores não estatais como protagonistas. Nesse cenário, destacam-se terroristas e facções de crime organizado.
Uma das peculiaridades brasileiras é que o Comando Vermelho, primeira facção de crime organizado dessa geração atual de protagonistas surgiu justamente da simbiose de criminosos comuns e terroristas brasileiros, quando foram todos confinados no presídio da Ilha Grande no início da década de 1970. Naquela oportunidade os criminosos assimilaram técnicas, táticas e procedimentos de guerra irregular e adquiriram sofisticada capacidade de organização e planejamento das ações que foram sendo aperfeiçoadas com o tempo.
Nesse cenário mundial cada vez mais complexo, em que mudanças climáticas têm ocorrido aceleradamente, a população se multiplica e os alimentos escasseiam. Também se observa que alguns Estados vão à falência e passam a ter seu estado fatiado por organizações de crime transnacional e/ou terroristas. Esse contexto também acaba por provocar ondas migratórias que desestabilizam algumas regiões mais equilibradas.
Sintonizado com a evolução dos tempos, em 2006, o professor Bartosz idealizou o termo “Black Spots” (“ou buracos negros”) para identificar as regiões que se localizam geograficamente dentro de Estados, mas os mesmos não têm capacidade de controle sobre as mesmas. À semelhança dos Estados falhados, esses compartimentos constituem-se em irradiadores de violência, corrupção e ilícitos.
Dotado de dimensões continentais, o Brasil possui cerca de 17 mil Km de fronteiras terrestres e um litoral com cerca de 8 mil Km. Uma extensão territorial como essa associada à má gestão da Segurança Pública e da Defesa, acaba por favorecer a existência de inúmeros Black Spots no interior que podem ser classificados em rurais e urbanos.
Dentre os Black Spots rurais, destacam-se as terras indígenas, os acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e os garimpos. Sobre essas áreas podemos elencar como principais problemas:
- Narcotráfico – limítrofe dos principais países produtores de maconha (Paraguai) e de cocaína (Peru, Bolívia e Colômbia);
- Exploração mineral – evasão de divisas, lavagem de dinheiro, controle de garimpo e de empresas mineradoras;
- Indígenas – demarcação territorial (instrumentalizada por ONG estrangeiras e outros grupos de interesse), patrimônio cultural e autodeterminação;
- Extrativismo sem controle – madeireiros, pescadores, caçadores e seringueiros;
- Organizações não governamentais – objetivos homocêntricos e financiamento externo;
- Meio-ambiente – degradação e bio-pirataria;
- Questões fundiárias – impacto ambiental X produtividade;
- Terrorismo – aliança guerrilha, narcotráfico e garimpo.
Como exemplo de situação ocorrida em um Black Spot rural, podemos citar o lamentável episódio da exploração ilegal de diamantes na Terra Indígena Roosevelt que envolvia conexões e financiamento da campanha eleitoral de políticos locais e contrabando de pedras preciosas. O caso só ganhou notoriedade em 2004, quando os garimpeiros que acabaram sendo submetidos à condição de trabalho escravo, foram massacrados pelos indígenas por não aceitarem mais aquela condição e rebelaram contra os índios.
Já os Black Spots urbanos mais característicos poderiam ser:
- As favelas (e assemelhadas),
- Os presídios.
A complexidade dos cenários abrange o financiamento de campanhas de políticos que promovem leis que favorecem a impunidade de crimes violentos, a corrupção administrativa. Em Manaus, caberia uma atenção especial com a peculiaridade da Zona Franca, que favorece a sonegação e a criação de um paraíso fiscal.
Não é incomum uma integração entre esses dois segmentos rural e urbano. Por exemplo, existem quadrilhas que realizam roubos e furtos nas cidades e se refugiam em terras indígenas, onde a polícia tem limitações legais para entrar. Normalmente ocorre uma associação entre os dois segmentos e o produto do crime é compartilhado.
Segundo o último Anuário de Segurança Pública, em 2015 ocorreram 45.460 estupros e foram registradas 58.467 mortes violentas intencionais; esse número supera os 50.000 americanos que morreram durante toda a Guerra do Vietnã, que durou cerca de 14 anos; no mesmo período, Portugal sustentou um esforço de guerra colonial em três teatros de operações (Guiné Bissau, Angola e Moçambique) e contabilizou cerca de 14 mil mortos. Outra estatística dessa barbárie assinala que a cada nove minutos uma pessoa é assassinada.
Desde o início desse ano, as redes sociais têm veiculado imagens de uma violência extrema dentro dos presídios e a imprensa tem apresentado as principais ocorrências dessa crise do sistema penitenciário que já é antiga, mas só agora ganhou visibilidade.
Já faz muito tempo que o Estado perdeu o controle do sistema penitenciário para as facções de crime organizado em todo o Brasil. A situação é tão bizarra que, na verdade, já faz algumas décadas que o Estado tem dependido dessas organizações criminosas para manter esse frágil equilíbrio do sistema de encarceramento.
Outras evidências também assinalam que tem havido enorme negligência na gestão por parte dos governantes nas esferas estaduais e federais; essa semana, o Senador Magno Malta divulgou um vídeo afirmando que a ex-Presidente Dilma deixou de repassar mais de 86% da verba prevista para o sistema penitenciário.
Agravando esse contexto, cerca de cinco meses atrás, houve um rompimento na aliança entre as duas principais facções de crime organizado do Brasil, o já nomeado Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC).
O acordo abrangia, basicamente, a proteção dos integrantes no sistema carcerário e aquisição de drogas e armas. Como primeiros sintomas, disputas de territórios de venda de drogas foram desencadeadas no Rio de Janeiro e pelo menos 18 detentos em prisões de Rondônia e de Roraima foram assassinados e alguns degolados. Já naquela oportunidade, foram veiculadas imagens nas redes sociais de presidiários jogando futebol com a cabeça de uma das vítimas e imagens dos ataques nas favelas do Rio de Janeiro.
De lá para cá, praticamente nada foi providenciado pelas autoridades estaduais prevendo uma desregulação no frágil equilíbrio que reinava nesse ambiente. A explosão de violência era previsível e já dava mostras de ocorrer.
Desde o Século XVII, o pensador Thomas Hobbes passou a ser uma das referências da Filosofia ao afirmar que a tendência do ser humano é viver em “estado da natureza” de maneira autodestruidora. Para assegurar a sobrevivência do grupo, há uma certa espécie de “pacto inicial”: renúncia em nome da segurança.
É por isso que, normalmente as pessoas que ingressam no sistema carcerário aderem às facções para garantir a sobrevivência. Através dessa sistemática, os líderes das facções que controlam os presídios conseguem evoluir para o “estado de sociedade”, como forma de “domesticar” a convivência entre seus integrantes.
O mesmo autor também entende que nenhum grupo soberano quer abrir mão de sua soberania ou autoridade em prol de outra autoridade gestora da segurança. Baseado nessa premissa, podemos observar a fraqueza do poder público, principalmente nos últimos 40 anos e a atual crise do sistema penitenciário em que as facções têm inclusive realizado uso de comunicação estratégica enviando mensagens às redes sociais caracterizando que a guerra principal é contra a facção rival.
Cabe ressaltar que, no interior das depreciadas instalações, os detentos já não permanecem mais nas celas, cujas grades foram propositalmente depredadas e também fazem uso livremente de smartphones que entraram clandestinamente no lugar.
Considerando-se o que já dizia o pensador americano Reinhold Niebuhr em 1932, “ […] o poder implica a culpa do seu uso […]”, fica nítida a postura irresponsável e reativa que alguns governadores estaduais adotaram depois de anunciado o rompimento da aliança entre as duas facções.
A primeira impressão assinala, negligência das agências de inteligência ou dos tomadores de decisão no nível político ao terem conhecimento dos relatórios produzidos. Além da disputa da liderança no Brasil, seria previsível também uma disputa pelos mercados fornecedores e pelo espaço colombiano, com a possível assinatura de um acordo entre os líderes das FARC e o governo da Colômbia.
Ao observarmos a evolução dos tempos e o protagonismo de atores não estatais, identificamos que esses choques de interesses e a deflagração de uma guerra aberta, dentro e fora dos presídios, entre o Comando Vermelho e o PCC acabam por materializar a visão do militar estrategista prussiano Carl Von Clausewitz no Século XIX de que “A guerra nada mais é do que a continuação das relações políticas por outros meios.”
Esse cenário brasileiro de disputa de poder entre o Comando Vermelho e o PCC tem consistido em realizar alianças com facções criminosas regionais, como se fosse uma espécie de franquia. Dessa forma, algumas organizações criminosas ganham mais status e capacidade de recrutamento de integrantes pela condição de pertencimento a uma organização maior e mais poderosa.
Esse mesmo processo pode ser identificado no contexto do terrorismo jihajista internacional em que a Al Qaeda e o Estado Islâmico têm realizado procedimentos similares na construção de alianças com organizações terroristas locais em países muçulmanos da África e do Oriente Médio.
De certa forma esse cenário acaba por reproduzir o cenário da bipolarização existente na época da Guerra Fria, caracterizando-se por materializar um dos possíveis sistemas de poder idealizado em 1957 pelo professor da Universidade de Chicago Morton Kaplan. O mesmo autor também afirma que é necessário um Balance of Power (equilíbrio de poder), para que seja obtida uma estabilidade nos cenários e foi justamente o que foi quebrado com o final do pacto entre o CV e o PCC.
Conforme iniciei esse ensaio, é fundamental que a sociedade moderna, os políticos, militares e gestores de segurança pública percebam que a rapidez da instabilidade dos cenários será cada vez mais intensa, o que tem levado vários Estados a falhar.
A facilidade de acesso às novas tecnologias e a entrada do mundo na Era da Informação passou a permitir que os atores não estatais passem a fazer uso das redes sociais para realização de comunicação estratégica de alto impacto, facilitando o recrutamento de simpatizantes. Some-se a isso o mercado negro de armamentos de guerra que eram, até algumas décadas, dotação exclusiva de Forças Armadas; atualmente chegam às mãos de guerrilheiros, terroristas e organizações criminosas.
O contexto descrito acima tem levado ao questionamento da percepção de que nem todos os Estados tem plena capacidade de projetar poder dentro do próprio território e garantir com isso sua soberania. O perigo desse cenário se agrava quando essas más gestões governamentais possam vir a comprometer a segurança internacional e levar ao questionamento da soberania do país.
Além das rebeliões nos presídios de Manaus, Roraima na primeira semana do ano que totalizaram quase 90 mortos, temos observado a incompetência e apatia do governador do estado do Rio Grande do Norte que permite uma rebelião durar mais de 160 horas e a transmissão ao vivo de confrontos entre gangs.
Também vale ressaltar a lamentável interferência do governador do RN no trabalho técnico de negociação exercido por policiais qualificados; essa ação acabou por favorecer o desencadeamento de ações terroristas do crime organizado em Natal, quando nessa semana foram incendiados cerca de 20 ônibus, e mais uma dezena de viaturas policiais, ambulâncias, atacadas instalações de órgãos públicos do mesmo estado.
Creio que seja impossível tratar esse assunto sem abordar o vetor político. Na minha opinião, já houve provas suficientes de que o governador não quer comprar o desgaste de uma intervenção em força para não ser criticado por organizações de Direitos Humanos. O Governo Federal também não realiza uma intervenção Federal para não desgastar o Governador. E repete-se o arremedo que foi preparado por ocasião da ocupação do Complexo do Alemão (2010-2012), após a onda de ataques do Comando Vermelho.
O resultado é novamente o uso da fórmula mágica, as Forças Armadas fazendo o trabalho das forças de segurança estaduais porque o estado foi incompetente em inúmeros aspectos que vão desde o atraso no pagamento dos vencimentos dos policiais e demais funcionários, até a má gestão das contas públicas. Na raiz disso tudo encontramos a corrupção.
Muito se têm escrito sobre os números e fórmulas para resolver esse assunto. De uma maneira patética, no dia seguinte da segunda matança no presídio de Roraima, o Ministro da Justiça apresentou um Plano Nacional de Segurança com ações óbvias e que já eram previstas; parece que ainda não entenderam que o que está faltando, há vários anos, é comprometimento e vontade política de fazer as coisas.