Antropologia do Crime Organizado no Brasil

As técnicas, táticas e procedimentos de guerra irregular usados atualmente pelo crime organizado no Brasil foram assimilados pelos revolucionários comunistas na década de 1960 em Cuba, na China, na Albânia e noutros países da Cortina de Ferro.

Posteriormente, o guerrilheiro brasileiro Carlos Marighela os sintetizou escrevendo o Mini Manual do Guerrilheiro Urbano (1969), conhecido e usado pelas principais organizações terroristas e criminosas do mundo, a partir de então. No início da década de 70 os integrantes da luta armada e criminosos comuns foram acomodados juntos no Presídio da Ilha Grande. Nessa oportunidade os ensinamentos foram difundidos.

Da simbiose de criminosos políticos e os comuns, nasceu a Falange Vermelha, que depois evoluiu, sofisticou-se e tornou-se o Comando Vermelho (CV), primeira facção de crime organizado do Brasil, hoje possuindo conexões internacionais como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Na década de 1990 houve uma proliferação de facções do crime organizado, destacando-se o Primeiro Comando da Capital (PCC), Terceiro Comando Puro (TCP), dentre outros. Várias delas passaram a ter alguns procedimentos e comportamentos similares.

As facções de crime organizado possuem sua “cultura” oculta que no fundo o diferencia de outras instituições sociais. Desvendando os valores culturais dessa sociedade criminosa, é viável identificar as motivações de seus integrantes, o grau de dedicação dos seus componentes e as razões do seu sucesso.

Criar uma visão antropológica da facção criminosa tem como objetivo: identificar o conjunto de valores que formam a sua cultura; possibilitar subsídios ao combate às atividades desenvolvidas frente às transformações socioculturais do contexto atual; possibilitar a compreensão da complexidade e diversidade presentes na intensa relação criminoso- facção criminosa-sociedade.

Um estudo das sociedades considera a especificidade da espécie humana e do seu universo cultural. A visão cultural-antropológica aproxima os gestores e as organizações da realidade em que vivem, ou seja, dos costumes, das pessoas e do ambiente real.

Antropologia Filosófica é uma disciplina recente. Inicialmente os filósofos gregos apenas preocupavam-se com os mistérios do cosmo e do universo. Sócrates desceu a filosofia do espaço para a Terra e criou a investigação antropológica e definiu o homem como o ser que pensa (animal racional). Seguem-se inúmeras visões sobre o Homem como: a Medieval (predominantemente cristã), a Moderna (baseada nos questionamentos de Emanuel Kant sobre a moral, metafísica, religião e conhecimento) e as diversas especialidades da Contemporânea e seus estudiosos, dentre eles Karl Marx e Sigmund Freud. No entanto, não há necessidade de se aprofundar neste assunto aqui.

Sendo a Antropologia uma ciência que estuda o homem, sua origem, sua natureza, seu modo de vida sobre a situação no mundo, cabe obter uma visão mais ampla do integrante dessa facção criminosa em suas múltiplas e mais profundas dimensões.

O criminoso não nasce pronto, precisa ser criado e optar por esse estilo de vida. Muitas pessoas nascem no mesmo ambiente que os criminosos e não aderem a esse estilo de vida. Às vezes até mesmo entre dois irmãos gêmeos idênticos que possuem a mesma educação e padrão de vida, um escolhe ser bandido e outro não. O que se pretende afirmar é que o fator “livre-arbítrio” nunca deve ser desconsiderado. Também não significa que existem inúmeros atrativos para que um jovem seja seduzido para o crime organizado.

O homem é um ser de necessidades biológicas, psíquicas e sociais, satisfeitas na relação que estabelece com o ambiente, consigo mesmo e com a sociedade local.  A sociedade de consumo atual instiga seus integrantes a compulsivos hábitos de consumo, criando muitas vezes falsas necessidades materiais que se manifestam na aquisição desnecessária de bens.

As necessidades biológicas dos integrantes dessas facções são supridas pelo seu “trabalho”(atividade criminosa), que provê sua fonte de renda e custeio da sobrevivência. Muitas vezes os integrantes das facções criminosas buscam um consumo acima de suas necessidades ou de artigos extremamente caros para ostentação à comunidade que vivem. Suas necessidades de locomoção acabam ocorrendo utilizando-se de carros de luxo ou motocicletas de grandes cilindradas. Esse é um rastro que possibilita a sua identificação pelo sistema de inteligência das forças de segurança.

As necessidades psíquicas são supridas pela relação consigo mesmo, é a descoberta da individualidade, do EU. Essa percepção implica no autoconhecimento, cultivo da autoestima e cuidados pessoais. Existem várias maneiras de identificar esses aspectos nos integrantes dessas facções. Dentro da hierarquia atual, os principais líderes costumam ostentar grossos cordões de metais nobres (ouro, prata e platina) , normalmente com pingentes grandes com iniciais das facções, armas automáticas ou iniciais dos líderes do crime. A gravação de determinados desenhos específicos na pele também é uma forma de manifestação desse aspecto. Após observar os padrões das tatuagens e conversas com moradores das comunidades ocupadas por forças de segurança foi possível perceber que os integrantes do Comando Vermelho costumam se identificar tatuando um índio pele vermelha. Outras tatuagens identificam outros traços de personalidade: caveira os matadores de policiais, palhaços armados para os assaltantes de banco, dentre outros símbolos.

As necessidades sociais são supridas pelo estabelecimento de relações de cooperação ou competição, de solidariedade ou individualismo. Existe uma forte dicotomia nessas relações. É normal o assassinato de um parceiro na disputa pelo controle dos “negócios da firma” conforme eles costumam dizer. Quando isso ocorre, praticamente toda estrutura do “staff” sucumbe com o líder eliminado.

A relação entre os criminosos é a base da construção da identidade do indivíduo e da cultura da organização criminosa. Dentre todas as necessidades supracitadas, uma se impõe sobre todo ato humano: compreender a vida e dar sentido para ela. O estabelecimento dessa função é necessário na rotina do ser humano e promove um sentido a sua vida. O criminoso é fruto de suas vivências e experiências pessoais cotidianas e isso dá significado à sua vida. Essa compreensão é necessária aos integrantes das forças de segurança e órgãos de inteligência se quiserem atingir maior eficácia no combate ao crime organizado. Da mesma forma, esse entendimento tem que fazer parte do estudo ao serem elaboradas estratégias sociais para comunidades reféns do crime organizado.

Publicado na Edição Especial da Revista Diálogo – Outubro 2015.